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Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

"A man gotta have a code"

Omar Little

 

Há um fascínio pela personagem Omar ("The Wire") semelhante ao que existe pela versão romantizada da Máfia. Em comum: ambos seguem um código de conduta; um contraponto ao actual zeitgeist: não é que não exista a noção de certo ou errado, acontece que já não existe sequer o certo

 

Não, antigamente o Mundo não era um paraíso de virtude. E sim, os mafiosos eram violentos, com nenhum respeito pela vida humana. O que importa, porém, é a percepção. Esta influencia o comportamento e reforça-se a si mesma. Parafraseado Naipaul, a personalidade de cada um é construída de acordo com as ideias que nos rodeiam. 

 

Ora, a cultura popular, desde as simples fábulas às longas-metragens de Hollywood, procuravam criar meta narrativas de uma certa moralidade. A sua hipocrisia foi, e bem, exposta, mas não surgiu nada em sua substituição. Ficou um vazio, uma sensação de ausência de limites, de barreiras, em que todos os meios são aceites e o sucesso é a medida de todas as coisas.

 

"E a tristeza tem sempre uma esperança..."

Vinicius de Moraes

 

Por este motivo a propaganda do Governo é tão poderosa. Ela corresponde a uma ânsia de acreditar que vai tudo melhorar, que nada foi em vão; todos os sacrifícios valeram a pena e que o futuro será melhor.

 

Com efeito, a propaganda para ter sucesso não precisa de ser verdadeira, nem verosímil, basta que corresponda a uma predisposição, a um desejo latente.

 

Pelo contrário, a satisfação é sempre incompleta. Somos insaciáveis, faz parte da nossa essência. E como tal os níveis de contentamento são ajustados a cada patamar atingido. Como escreveu Naipaul: "satisfaction solved nothing. It only opens up a new void, a fresh need." E, se mesmo assim, nem que seja por um instante, for atingida a satisfação plena esta é agridoce, pois que permanece a certeza que esta não pode durar para sempre.

 

Deste modo, será porventura mais fácil uma reeleição baseado nuns ligeiros e ténues sinais que demonstrem (mesmo que erroneamente) uma melhoria do que com o aviso Macmilaniano de "never had it so good".

 

A ser verdade quais são os incentivos que isto representa para um Governo em funções?

Na Assembleia da República assiste-se a mais um debate quinzenal. Nada de novo. Os mesmos argumentos retóricos repetidos uma e outra vez. O discurso pincelado com as palavras de ordem decidido por especialistas de marketing. 

 

No momento em que a alternativa se transformou em alternância iniciou-se a decadência da democracia, a morte acontece no momento que se decide que não há alternativas, que só há um caminho.

 

"...arranging and rearranging was Decadence, but the exhaustion of all possible permutations and combinations was death”

Adoro a expressão "all at sea". Faz-me sentir português: aquele sentimento aconchegante de pertença. Porque, pese embora conhecer o seu significado - confusão; perdido - sou incapaz de o apreender; há uma dessintonia entre o seu sentido e o que me faz sentir (calma, ausência de preocupações).

 

São os efeitos da cultura. Ora, ao contrário do que alguns pseudomodernos julgam, a cultura é um elemento definidor de um povo, não os torna melhores nem piores, mas diferentes. E, como tal, não pode ser esquecida na altura em que são implementadas políticas.

 

Infelizmente, os actuais governantes, parafraseado Naipaul, vêem-se ao mesmo tempo como os homens novos de Portugal e como os homens do Novo Portugal.

The need to get the words & voices not only out—outside the sixteen-inch diameter of bone that both births & imprisons them—but also down, trusting them neither to the insubstantial country of the mind nor to the transient venue of cords & air & ear; seems for Kate—as for anyone from a Flaubert to a diarist to a letter-fiend—a necessary affirmation of an outside, some Exterior one’s written record can not only communicate with but inhabit.

 

Nos diversos relatos sobre censura é referido que a sua imposição é mais psicológica que efectiva. Por outras palavras, a simples existência de censura prévia reforça a autocensura, que ainda consegue ser mais limitativa do que aquela: a verdadeira submissão não é obedecer mas antecipar ordens.

 

Por isso é que estremeço sempre que surgem apelos ao silencio quanto a determinadas matérias que poderão irritar os "mercados" e que sorri quando ontem ouvi a Merkel conceder apoio público a "qualquer decisão que Portugal tomar.

Uma das maiores contradições da humanidade é sermos conscientes da "universal" finitude mas continuar a raciocinar usando a dicotomia provisório/permanente.  

 

Somos mais exigentes com o que percepcionamos de permanente - quer seja uma habitação, um namoro ou uma política - e mais tolerantes com o que se julga que é efémero; apesar de na prática o tempo de qualquer uma delas até poder ser equivalente. 

 

Deste modo, percebe-se o desconforto do Governo ao ter que admitir que os cortes salariais são permanentes, por que tal admissão o impede de atenuar a resistência a medidas gravosas apelidando-as de provisórias.

 

Ora, o Poder serve-se desta dicotomia consoante os interesses e circunstâncias - também é necessário "vender" a ideia de um mundo perene e perpétuo (será que a civilização de manteria se fosse descoberto que todo o universo terminaria no prazo de 100 anos?). É uma forma de subjugação e de manutenção do statu quo (por alguma razão as religiões contrapõem a brevidade da vida terrena cheia de sofrimento versus a felicidade eterna no reino dos deuses).

 

 

Ao ouvir os apelos da diplomacia internacional sobre o povo ucraniano lembro-me sempre da forma como se iniciou a findou 2ª Guerra Mundial. O seu "inicio oficial" deu-se com a invasão da Polónia pelas tropas alemãs e as consequentes declarações de guerra de França e Inglaterra a fim de defender a independência da Polónia; e, no final, depois de milhões de mortes, o que aconteceu à Polónia? Acabou sob o jugo da URSS.

 

Natural, cada país defende os seus interesses. Sim, só tenho pena que o Governo de Portugal ainda não tenha percebido isso.

"A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor", com esta frase Montenegro, líder parlamentar do PSD, consegue exemplificar com uma perfeição cristalina a definição de decadência de Pynchon.

 

Para este escritor, a decadência é o afastamento do que é humano, quanto mais nos afastamos menos humanos nos tornamos. E como somos menos humanos, procura-se impingir a humanidade que se perdeu em objectos inanimados e teorias abstractas. E alguém que fala de pessoas como se fosse pontos ou curvas num gráfico tem crenças não-humanas.

 

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