Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

 

Ao ouvir os apelos da diplomacia internacional sobre o povo ucraniano lembro-me sempre da forma como se iniciou a findou 2ª Guerra Mundial. O seu "inicio oficial" deu-se com a invasão da Polónia pelas tropas alemãs e as consequentes declarações de guerra de França e Inglaterra a fim de defender a independência da Polónia; e, no final, depois de milhões de mortes, o que aconteceu à Polónia? Acabou sob o jugo da URSS.

 

Natural, cada país defende os seus interesses. Sim, só tenho pena que o Governo de Portugal ainda não tenha percebido isso.

"A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor", com esta frase Montenegro, líder parlamentar do PSD, consegue exemplificar com uma perfeição cristalina a definição de decadência de Pynchon.

 

Para este escritor, a decadência é o afastamento do que é humano, quanto mais nos afastamos menos humanos nos tornamos. E como somos menos humanos, procura-se impingir a humanidade que se perdeu em objectos inanimados e teorias abstractas. E alguém que fala de pessoas como se fosse pontos ou curvas num gráfico tem crenças não-humanas.

 

No "Admirável Mundo Novo" de Huxley a ordem e o desenvolvimento económico são os seus alfa e ómega. Em vez de um sistema democrático as decisões são tomadas por um sábio, a bem de todos. Toda a actividade humana é utilitarista: de produção e consumismo exacerbado - um simples passeio no parque, por não preencher estes requisitos (não é produtivo nem é consumível), é mal visto pela sociedade.

 

Os indivíduos aspiram pertencer às "classes (castas) superiores", mas ficam gratos por não pertencerem à "classe inferior" (não somos a Alemanha, mas também não somos a Grécia); e, se mesmo assim existir um sentimento de infelicidade, há sempre "soma": uma droga não viciante e sem efeitos colaterais, o perfeito anti-depressivo. Uma sociedade obcecada com a aparência e com a juventude, onde não há envelhecimento: todos mantêm a aparência de 20 anos até à sua morte, que sucede aos 65 anos.

 

A coincidência entre esta distopia com os "desejos" e prática da maioria da população é aterradora, mas também o que torna aquele livro ainda hoje, passados 80 anos da sua publicação, relevante.

 

E é difícil não regressar a Huxley quando se ouve o Ministro da Economia a falar de investigação direccionada para a produção imediata; uma deputada portuguesa que considera não ser premente para a sociedade actual a investigação de flora que não seja nacional; ou ainda ler que Vítor Gaspar que, pegando num artigo de Hayek de 1939, defende a limitação do poder dos estados democráticos perante a automatização de políticas supranacionais.

 

Estaremos dispostos a trocar tudo por ordem, segurança e conforto material?

"...life's single lesson: that there is more accident to it than a man can ever admit to in a lifetime and stay sane"

- Pynchon - "V."

 

Toda a ideologia é uma construção da realidade (por isso é de recear os que se intitulam de realistas). E essa construção parte de premissas. Ora, a premissa de parte da direita liberal é o individualismo. O indivíduo controla o seu futuro. Com muito trabalho e esforço o sucesso - no sentido material (a definição de sucesso é outra questão) - está garantido. Por sua vez, a sua ausência é da responsabilidade de cada um, há um elemento de culpa no insucesso (como país isso também acontece: somos apelidados de mandriões, incapazes de gerir os nossos destinos, etc).

 

Deste modo, à questão que a "New Statesman" coloca - se a declaração de Cameron que dinheiro não é obstáculo para ajudar as vítimas das cheias não é contraditória da defesa da austeridade como a única alternativa (onde já ouvi isto?) e como tal sem meios para combater o aumento da pobreza e dos sem-abrigo, que terá que ser tolerada - deve ser levado em conta a ideologia de Cameron. 

 

Para o Primeiro-Ministro Britânico as cheias são actos de natureza pelo que as suas vítimas não poderão ser responsabilizadas de tais consequências, ao contrário dos pobres e dos sem-abrigo que se encontram nessa situação por culpa própria. 

 

Por isso é sempre bom lembrar aos seguidores desta ideologia que fortuna também é sorte.

 

De acordo com Dr. Bronowski* todo o conhecimento pode ser preciso mas nunca totalmente certo, haverá sempre uma tolerância de incerteza, razão pela qual defendia que o Princípio da Incerteza de Heisenberg deveria chamar-se Princípio de Tolerância.

 

"Todo o conhecimento, toda a informação trocada entre seres humanos, apenas pode ser trocada dentro de um "ambiente de tolerância" (nunca num ambiente de certeza completa), quer seja ciência, literatura, política ou religião."

 

Ora, numa democracia a tolerância, um dos seus elementos indissociáveis, é entendido quase exclusivamente na relação com o outro, e nunca em relação ao nosso próprio pensamento: a consciência que este é falível e como tal poderá estar errado.

 

A insistência no argumento da ausência de alternativas corresponderia deste modo a uma tolerância zero, isto é, a negação de democracia. 

 

* Foi-me dado a conhecer através deste magnífico texto.

 

 

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2010
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2009
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2008
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2007
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D