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Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

A hora mudou, o tempo esse mantém-se inalterável. 

 

Quando ouvi pela primeira vez o "FMI" de José Mário Branco considerei-o anacrónico, seguramente que tal não voltaria a acontecer; agora acordo com as palavras Consolida filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde.


Até a Gabriela, porra. Nada, nada mudou.

Algumas Coisas


A morte e a vida morrem 
e sob a sua eternidade fica 
só a memória do esquecimento de tudo; 
também o silêncio de aquele que fala se calará. 

Quem fala de estas 
coisas e de falar de elas 
foge para o puro esquecimento 
fora da cabeça e de si. 

O que existe falta 
sob a eternidade; 
saber é esquecer, e 
esta é a sabedoria e o esquecimento. 

Manuel António Pina, in "Aquele que Quer Morrer"

Há uns tempos o Ministro da Administração Interna aludiu à fábula da Cigarra e da Formiga, retirando a usual moral da história: apenas com trabalho árduo estaremos protegidos no futuro.

 

Sucede que na fábula que eu conheço a Formiga, por pena, acaba por ajudar a Cigarra, dando-lhe alojamento e comida. A Cigarra não perdeu uma pata em virtude do frio extremo ou viu as suas cordas vocais danificadas, em suma as coisas acabaram até por correr bem para ela. Desta forma, existe uma incongruência inultrapassável entre a fábula e a moral*.

 

Por essa razão sempre extraí desta fábula uma moral diferente: uma sociedade justa não excluí os mais desfavorecidos, mesmo que estes tenham cometido erros; nenhum erro pode colocar em causa a dignidade da pessoa humana. Acresce que os humanos, ao contrário do que algumas teorias económicas defendem, não são seres totalmente racionais, nem as suas acções pressupõem uma atitude consciente.

 

Num tempo cada vez mais em crise seria importante mais governantes mencionarem esta fábula mas com a moral actualizada.

 

Adenda:Conceição Bernardes é a directora do agrupamento Dra. Laura Ayres e decidiu proibir as crianças filhas de pais que não conseguiram pagar as refeições de comerem no refeitório da escola que dirige. Os requintes de malvadez chegaram ao ponto de ela não permitir que uma funcionária do refeitório pagasse a refeição a uma das crianças, tendo esta sido obrigada sentar-se ao lado dos colegas sem comer. (fonte)

 

* No original do Esopo a Formiga não ajuda a Cigarra, pelo que aqui a moral não sofre de qualquer contradição.

Um estudo do Instituto Max Planck confirmou o que os filmes de terror já sabiam: na falta de pontos de referência ou quando estão de olhos vendados os humanos tendem a caminhar em círculos.

 

A actual crise, um verdadeiro filme de terror, demonstra igualmente este facto com perfeita clareza. A certa altura deixou de existir um desígnio - a sua própria menção tornou-se alvo de chacota de espíritos mais cínicos.

 

Na sua ausência, na falta de um claro ponto de referência iniciou-se uma caminhada circular, medidas avulsas, desconexas, sem uma visão sistemática, que as sucessivas alterações legislativas são disso prova.

 

É altura de abrir os olhos.

O cenário para essa tragédia nacional era uma economia que deliberadamente se virou do avesso, de subsistência para destituição.  

 

No início dos anos oitenta, Ceauşescu decidiu reforçar a credibilidade internacional do seu país através da liquidação da enorme dívida externa da Roménia. As agências do capitalismo internacional - começando pelo Fundo Monetário Internacional - ficaram encantadas, não poderiam elogiar o ditador romeno o suficiente. (...)

 

Para pagamento dos seus credores ocidentais, Ceauşescu aplicou uma pressão implacável e sem precedentes sobre o consumo interno.  (...) O Conducător romeno começou a exportar cada mercadoria disponível produzida internamente. Os romenos foram forçados a usar lâmpadas de 40 watts em casa (quando a electricidade estava disponível), de modo que a energia pudesse ser exportado para Itália e Alemanha. Carnes, açúcar, farinha, manteiga, ovos, e muito mais foram estritamente racionado. Para aumentar a produtividade quotas fixas foram introduzidos para trabalho público obrigatório aos domingos e feriados (a corvéia, como era conhecido na França do ancien régime).  

 

O uso de gasolina foi reduzido para o mínimo: em 1986 um programa de criação de cavalos para substituir veículos motorizados foi introduzido. Carroças puxadas a cavalo tornaram-se o principal meio de transporte (...).  As políticas de Ceausescu tinham uma certa lógica macabra. Roménia conseguiu de facto pagar aos seus credores internacionais, embora ao custo de reduzir a sua população à penúria.



Tony Judt,  "Postwar: A History of Europe Since 1945" (tradução e negritos meus)

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