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Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

 

Numa das grandes obras literárias de sempre (sendo certo que sou dado a exageros, neste caso considero esta frase um tudo ou nada ponderada), Yossarian, a personagem principal de "Catch - 22", é confrontada não só com o absurdo da guerra e da própria existência, mas sobretudo com a forma como a guerra é aproveitada, sob o manto de patriotismo e bem comum, para favorecimento pessoal: as personagens de chefia, e não só, procuram satisfazer as suas necessidades individuais, quer estas sejam de riqueza, quer sejam de glória.

 

Este impulso individualista, uma das conquistas mais importantes do iluminismo, tem vindo a tornar-se pouco a pouco homogéneo no nosso pensamento, sobrepondo-se à ideia de família, comunidade, sociedade, cujos laços são cada vez mais ténues. Porventura como reacção aos sistemas totalitários que procuravam a sobreposição do Estado sob o indivíduo, diluindo-o numa massa seguidora e acrítica, este individualismo foi acelerado no pós 2ª Guerra Mundial.

 

Um dos pequenos pormenores que exemplificam esta tendência são os desportos mais recentes, os denominados desportos radicais, que rejeitam o colectivo ou o diálogo com o adversário, como o ténis, e procuram apenas o grau de perícia individual do praticante.

 

Este impulso, em vez de ser domado e usado com parcimónia, foi objecto de celebração; fundamentado numa teoria utilitarista, foi difundido a ideia de que o bem comum é o resultado do maior número de necessidades individuais saciadas. Parte da crise actual está assente neste excesso individualismo: "O que é racional do ponto de vista individual – cada empresa, para sobreviver e prosperar, corta os custos laborais cada vez mais –, ignora que os meus custos laborais são os rendimentos e o consumo de alguém".

 

No entanto, a questão não se pode apenas cingir ao comportamento das empresas mas também do consumidor individual que, na tentativa de fugir a preços mais altos refugiou-se no monopólio das grandes marcas e das grandes superfícies, o que conduziu à morte lenta do pequeno produtor e do comércio tradicional. 

 

Por isso quando olho para as ruas do Porto, por exemplo para a Rua Júlio Dinis, coberta de lojas encerradas ou em liquidação total, não posso deixar de me sentir culpado.

Costumava-se dizer que para o ideal anti-esclavagista o pior que existia eram os donos de escravos que os tratavam bem, porquanto estariam a tornar uma situação inadmissível aceitável aos olhos da opinião pública.

 

Eu temo que este pequeno rebuçado de um imposta extra sobre os mais ricos - o que corresponde apenas a uma operação cosmética para permitir que os "ricos" possam afirmar que também contribuíram - leve a que nada mude realmente, quer seja na tributação do capital, das transacções financeiras, nos off-shores; que seja no próprio sistema económico actual assente na ideia do "trickle down", combatendo os monopólios e as acumulações de grandes fortunas.

 

"O mundo proclamou a liberdade, especialmente nos últimos tempos, e o que vemos na liberdade deles? Só escravidão e suicídio! Porque o mundo diz: "Tens necessidades, portanto satisfá-las, porque tens os mesmos direitos que as pessoas mais nobres e ricas. Não temas satisfazê-las mas, inclusive, multiplica-as - eis a doutrina actual do mundo. (...) Então, o que resulta deste direito à multiplicação das necessidas? Entre os ricos, o isolamento e o suicídio espiritual, entre os pobres a inveja e o homícidio, porque os direitos foram dados, mas não foram indicados ainda os meis para satisfazê-los."

 

- Os Irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski

 


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