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Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

No Porto, a gelataria Sincelo é famosa tanto pela qualidade dos seus deliciosos gelados artesanais como por ter a mesma decoração, cadeiras, mesas, fardas dos empregados e praticas (o copo de água fria que acompanha os gelados) imutáveis desde a sua abertura, há cerca de 30 anos.

 

Num mundo composto de mudança, obsessivo de renovação e de novidade, são necessárias âncoras capazes de nos segurar por entre a torrente do eterno devir. Locais, como o Sincelo, fazem-me sentir aconchegado, seguro: lá fora tudo muda enquanto cá o tempo está suspenso.

 

Não, não é nostalgia – não embarco numa viagem proustiana a cada colher de gelado – é sentir o presente igual ao passado, “apenas” isso.

 

No entanto, este sentimento tem de ser autêntico, não pode ser forjado, artificialmente criado através a utilização de um filtro sépia numa fotografia à moda do instagram.

 

Os anos têm que passar sobre os locais e estes resistirem como puderem até criarem esta aura de conforto.

 

Fica-se maravilhado pelo moderno e inovador mas apenas com o perene encontra-se o sossego.  

Neste fim-de-semana senti orgulho em ser portista. O quê?! Sentir orgulho após dois resultados deploráveis: uma derrota contra uma equipa da quarta divisão europeia; e um empate e exibição paupéria, sem imaginação e estofo de campeão.

 

Costuma-se dizer que a verdadeira personalidade revela-se, não em alturas de sucesso, mas em tempos de dificuldade e infortunío, quando as marés de azar batem à nossa porta. 

 

Ora, o Porto, no jogo contra o Olhanense, teve, segundo os entendidos, duas grandes penalidades a seu favor que não foram assinaladas: uma discutível mão na bola de Mexer (infelizmente parece que actualmente tudo que toca na mão é falta) e uma falta do mesmo Mexer sobre o Hulk.

 

Pese embora estes incidentes, não ouvi, quer de parte da estrutura quer de quase a totalidade dos adeptos, qualquer referência a estas duas penalidades (e ainda bem que assim não o foi) cinjindo-se as críticas ao funcionamento da equipa, à falta de garra e confiança, à inoperância do treinador. 

 

Outros clubes menores teriam-se agarrado, com unhas e dentes, a estas duas penalidades para branquear o desaire. Os treinadores e dirigentes teriam levantando suspeitas e cabalas, sombras do sistema ou outras histórias de embalar a fim de ludibriar os seus adeptos, assinalando causas exógenas como origem dos maus resultados.

 

Essa atitude de desresponsabilização faria apenas eternizar a crise, os jogadores não sentiriam a necessidade de correr mais, jogar melhor porque no fundo a culpa era dos arbítros. Mas o verdadeiro campeão não é assim. O verdadeiro campeão vai buscar a cada dificuldade força para lutar mais e melhor, a cada injustiça mais vontade de se superar.

 

Isto é ser Porto! E foi por isto que senti orgulho.

 

Numa das grandes obras literárias de sempre (sendo certo que sou dado a exageros, neste caso considero esta frase um tudo ou nada ponderada), Yossarian, a personagem principal de "Catch - 22", é confrontada não só com o absurdo da guerra e da própria existência, mas sobretudo com a forma como a guerra é aproveitada, sob o manto de patriotismo e bem comum, para favorecimento pessoal: as personagens de chefia, e não só, procuram satisfazer as suas necessidades individuais, quer estas sejam de riqueza, quer sejam de glória.

 

Este impulso individualista, uma das conquistas mais importantes do iluminismo, tem vindo a tornar-se pouco a pouco homogéneo no nosso pensamento, sobrepondo-se à ideia de família, comunidade, sociedade, cujos laços são cada vez mais ténues. Porventura como reacção aos sistemas totalitários que procuravam a sobreposição do Estado sob o indivíduo, diluindo-o numa massa seguidora e acrítica, este individualismo foi acelerado no pós 2ª Guerra Mundial.

 

Um dos pequenos pormenores que exemplificam esta tendência são os desportos mais recentes, os denominados desportos radicais, que rejeitam o colectivo ou o diálogo com o adversário, como o ténis, e procuram apenas o grau de perícia individual do praticante.

 

Este impulso, em vez de ser domado e usado com parcimónia, foi objecto de celebração; fundamentado numa teoria utilitarista, foi difundido a ideia de que o bem comum é o resultado do maior número de necessidades individuais saciadas. Parte da crise actual está assente neste excesso individualismo: "O que é racional do ponto de vista individual – cada empresa, para sobreviver e prosperar, corta os custos laborais cada vez mais –, ignora que os meus custos laborais são os rendimentos e o consumo de alguém".

 

No entanto, a questão não se pode apenas cingir ao comportamento das empresas mas também do consumidor individual que, na tentativa de fugir a preços mais altos refugiou-se no monopólio das grandes marcas e das grandes superfícies, o que conduziu à morte lenta do pequeno produtor e do comércio tradicional. 

 

Por isso quando olho para as ruas do Porto, por exemplo para a Rua Júlio Dinis, coberta de lojas encerradas ou em liquidação total, não posso deixar de me sentir culpado.

Este fim-de-semana, senti-me como o Professor Kugelmass mas, em vez de Madame Bovary, entrei no meio de Money, de Martins Amis.

 

A noite começou com rodízio brasileiro, não será propriamente fast-food, mas a rapidez com que chegava mais e mais carne acabou por esbater em absoluto a diferença; e acabou num bar alternativo, de má fama, com pouca luz e muito fumo. O ritmo sincopado de holofotes acompanhado de música a uns decibéis muito acima do tolerável impediam o raciocínio, qualquer que ele fosse. Dispersos pelo Bar encontravam-se espelhos vampíricos que não reflectiam a figura dos clientes, impedindo o desconforto do confronto, o assumir da sua presença naquele local. Em nenhum outro local constatei tão puramente o poder do dinheiro, o seu toque de Midas: em tudo o que toca retira autenticidade, transformando tudo numa silhueta plastificada. 

 

Segunda-feira acordei. Pensava que tinha saído finalmente do baú do Persky, que tudo tinha regressado à normalidade, quando ouvi que o AVB se tinha despedido do Porto para ir para o Chelsea.

 

Afinal, nunca cheguei a sair do Money...

Acabou a época, inicia-se o defeso. O esférico deixou de rolar sobre a erva por isso discute-se sobre o palmarés dos clubes. É natural que o Benfica pugne por ter 69 títulos - quem é que não gosta de um 69 - por isso vá-se lá arranjar uma Taça Latina: o Torneio Guadiana lembra uma prova de canoagem enquanto a Taça Amizade soa um pouco maricas. 

 

A Fifa já veio esclarecer que a Taça Latina não é um trofeu oficial. Infelizmente, a Fifa continua sem perceber o nosso país: aqui os factos não interessam, muito menos é um critério dos nossos jornalistas, o importante foi a "projecção e a importância que os portugueses na altura lhe atribuíram". 

 

Bem, seguindo esse critério afigura-se que a Taça Arsenal deverá ser contabilizada a favor do Porto. Para quem não sabe, em 1948, o Arsenal, que era considerada a melhor equipa do Mundo, foi convidada para realizar dois jogos particulares em Portugal. O primeiro jogo disputou-se no Estádio Nacional contra o Benfica: vitória de 4-0 dos ingleses, tendo a imprensa da altura afirmado que os "gunners" eram a melhor equipa que jogara até então em Portugal. O segundo jogo, quatro dias depois, realizou-se no Estádio do Lima, contra o Porto: vitória dos portistas por 3-2.

 

Para comemorar tal feito realizou-se uma colecta na qual se angariou 200 contos. Esta quantia serviu para a construção de um troféu "A Taça Arsenal". Este troféu, que pesa mais de 250kg, é composto por duas peças: uma peça totalmente concebida em prata e um relicário*.

 

No entanto, esta é uma discussão estéril e sem qualquer importância, o que interessa é próximo jogo, a próxima competição. E, também é verdade que o Porto ainda não atingiu nacionalmente - internacionalmente já é outra história - o palmarés do Benfica, continuamos ainda longe do número de campeonatos nacionais e de taças de Portugal, as competições que realmente interessam.

 

 

* A história completa aqui 

Nos locais mais turísticos sucede um fenómeno interessante: o local transforma-se na visão que os próprios turistas têm dele, ou seja, para agradar aos visitantes, desejosos de beber o "típico", metamorfosea-se num simulacro do que era, perdendo com isso a sua autenticidade e o seu encanto. O que no início era a raison d'être da visita reduz-se ao longo do tempo a uma simples comodidade, um produto massificado e plastificado, com a consequente perca de qualidade.

 

A recente explosão, catalisado pelo Aeroporto Sá Carneiro e viagens low-cost, de turismo na cidade do Porto não terá ainda impacto suficiente para originar uma alteração fundamental na vivência da cidade. No entanto, se a tendência se mantiver poderá existir motivos de preocupação num futuro próximo: multiplicação nas principais artérias da cidade de lojas vendendo t-shirts alusivas à cidade do Porto, porta-chaves da Torre dos Clérigos, gomas com a forma de francesinha, argh!!!

 

Conforme referi neste artigo a identidade* é de construção lenta, e foi assim que a actual identidade do FC Porto foi construída. A chegada da dupla Pedroto/Pinto da Costa nos idos anos 70 marca o início, a primeira pedra desta empreitada: um novo discurso e uma nova atitude com o fim da subserviência perante o statu quo; a ideia da união de grupo, um grupo cercado de inimigos e de adversidades, que apenas sendo muito melhores, com esforço e trabalho, consegue alcançar a vitória.

 

Decorrente deste discurso surgiram diversos elementos que ajudaram na construção e consolidação desta nova identidade.

 

O primeiro elemento é "o jogador à Porto". O "jogador à Porto" é uma construção mítica mas um conceito já utilizado por treinadores quer do Sporting quer do Benfica: um jogador antes quebrar que torcer, incansável, que compensa a sua falta de elevado requinte técnico por uma enorme vontade e garra. Por este motivo, o Tribunal das Antas/Dragão é muito exigente a jogadores dotados tecnicamente que arriscam na finta, conforme era o Quaresma e agora o Hulk. 

 

O segundo elemento é a ideia de "underdog". Apesar de nos últimos 20 anos o FCP ter vencido 14 campeonatos nacionais, continua a ver-se a si mesmo como o "contender", o que está ainda atrás do sucesso. Por este motivo, as principais criticas dos portistas ao clube quando perde consiste no seu suposto "aburguesismo", que se teria acomodado no seu sucesso. 

 

Uma das desculpas utilizadas para o apagão do último clássico era de que, nas mesmas circunstância, o FCP teria feito muito pior. Discordo.

 

Por um lado, essa ofensa, porque seria o "inimigo" a vencer na casa do grupo, nunca seria permitida, como se verificou na temporada passada - e, nessa altura, bastava apenas um empate ao SLB -, jogando com um jogador a menos, venceu por 3-1.

 

Por outro lado, caso acontecesse presumo que os jogadores seriam obrigados a ver os festejos: no dia em que foi apresentado ao plantel por Pinto da Costa. Estavam os jogadores à espera do sucessor de Jesualdo Ferreira quando, no LCD que o novo técnico mandara, entretanto, instalar no balneário (e noutras áreas de acesso restrito), começaram a passar as imagens da festa do título do Benfica, no dia em que a Luz, na recepção ao Rio Ave, lotou para receber a taça de campeão. No vídeo viam-se Jorge Jesus e os futebolistas aos pulos no palco montado no relvado, enquanto tentavam, radiantes, acompanhar o We are the champions.

 

* A identidade não é sinónimo de realidade.

 

A característica mais importante de qualquer clube é a sua identidade. De tal forma que o maior receio actual dos sportinguistas não é ficarem no quarto lugar, ou pior, a mais de trinta pontos do campeão mas a belenização do clube.

 

A identidade, mais do que as vitórias, é o que permite a angariação de adeptos. As vitórias são um instrumento para obtenção de uma identidade ganhadora, mas como só ganha um de cada vez os clubes não podem depender apenas dessa característica. Aliás se fosse assim, não haveria adeptos de outros clubes que não dos três grandes ou por exemplo os LA Clippers não teriam qualquer adepto. 

 

A identidade é algo que demora anos, décadas a criar mas que pode ser rapidamente destruída com algumas condutas menos ajuizadas. Ora, o que se assistiu no clássico do último domingo foi a perca da identidade de uma grande instituição que é o Benfica. 

 

O Benfica, durante largos anos, criou a sua identidade: um clube popular, em contraponto com o elitismo do Sporting, que apesar de originário de um país pequeno, periférico, fechado sobre si mesmo, dava cartas na Europa; que conseguia bater-se de igual para igual com os colossos europeus como o Real Madrid ou Man Utd, conduzindo a que, apesar das rivalidades, tivesse o enorme respeito dos adversários e criasse até divisões entre os adeptos dos próprios clubes que o defrontavam (há não poucos anos, no antigo Estádio 1ª de Maio, era usual os adeptos do Sporting de Braga apoiarem ambos os clubes).

 

A certa altura, com as vitórias a escassearam, foi necessário a criação de uma narrativa, apoiada por certos órgãos de comunicação social, em virtude de necessidades comerciais, de forma a desresponsabilizar os seus dirigentes. Essa narrativa afirma que a vitória do clube, o mais maior clube do mundo, era o estado normal, um direito adquirido e que apenas por razões ocultas isso não sucederia.

 

Se por um lado, essa narrativa impõe um exacerbamento das vitórias*, traduzindo-se, ao mesmo tempo, nos jogadores uma certa sobranceria, uma ideia de facilidade, a questão no domingo não era saber se havia vitória mas por quantos (Coentrão afirmou que seriam por 2 ou 3). 

 

Por outro lado, o Benfica transformou-se num clube aristocrata, desligado da realidade, que prefere apagar as luzes a enfrentar a derrota, focar a sua atenção nas contratações futuras a admitir erros. Com essa atitude as derrotas tornam-se num acontecimento vazio, porque daí não retiram lições para o futuro: "tudo está bem, não é necessário correr mais ou jogar mais, a culpa não foi nossa, nem há mérito do adversário, a culpa foi das arbitragens no início do campeonato".

 

Acresce que se esta mentalidade não for rapidamente corrigida, e subsistir a ideia de que a vitória é normal, perde-se a sede de sucesso, a vontade de ganhar e, sobretudo, a ideia de superação, que é o factor talvez mais importante num jogo de futebol, porque o "normal" pode ganhar jogos mas raramente ganham competições.

 

 

 

* A equipa maravilha, apenas sagrou-se campeão na última jornada, terminou o campeonato anterior com 76 pontos, enquanto que o FC Porto sagrou-se campeão à 25º jornada (faltam 5 jornadas, 15 pontos em discussão) com 71 pontos.

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