Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

Na comparação entre "1984" e o "Admirável Mundo Novo" Neil Postman refere que enquanto Orwell temia a censura Huxley temia que nos fosse dada tanta informação que seriamos reduzidos à passividade e egoísmo, que a verdade fosse afogada num mar de irrelevância.

 

Uma autêntica "wall of sound" de informação cresce à nossa volta, cada vez mais difícil de escalar, de furar. Cansados, muitos desligam o ruído. Outros, com desdém e ares superiores, ironizam sobre a verdade - sofistas modernos a fazer a sua vidinha, porque "quando o dinheiro fala, a verdade cala-se" (provérbio russo).

As palavras, como as fachadas dos prédios, são dadas como adquiridas, o olhar prende-se na montra, no significado mais corrente, perde-se todo o seu alcance, no que se encontra além do imediato.

 

Ora, não é por acaso que em economia há uma diferença entre recessão e depressão. A depressão envolve mais do que a mera crise económica, transforma um país num torpor -  uma letargia que invade tudo, tudo: abusos que seriam objecto de escândalo são resolvidos com um simples encolher de ombros - e por ser uma doença autocentrada exacerba os egoísmos.

 

Seems so easy
Just to let it go on by
Till you stop and wonder
Why you never wondered why.


"Fruit Tree", Nick Drake

Os debates políticos realizados diariamente nos canais noticiosos entraram em modo repeat; os mesmos argumentos, como fotocópias de fotocópias de fotocópias, perderam relevância e clareza, ficando apenas legível um ponto: "não há alternativa".

 

Estranho mundo este que ao mesmo tempo que se admite que a austeridade não funciona afirma-se com total candura "sim, mas não há alternativa": um autêntico catch-22.

 

Ora, numa realidade absurda, desprovida de sentido, a razão deixa de ter lugar, resta o refúgio na loucura.  

Pode-se resumir a humanidade em dois tipos: as pessoas que ao falar terminam as frases com pontos finais e as que terminam com reticências.

 

A escolha quase unânime quanto a cargos políticos ou a comentadores recaí sobre o primeiro tipo: prefere-se um rumo, mesmo que este seja errado, à indecisão; prefere-se ouvir uma declaração clara e concreta a uma opinião hesitante e cautelosa.

 

Sendo certo que a indecisão paralisante é desaconselhável e perigosa, a dúvida metódica, que coloca em causa os pressupostos e os fins de uma decisão, é essencial em todos os processos de deliberação.

 

Infelizmente, o que se vê actualmente são demasiadas certezas, demasiados planos infalíveis.

 

Existe em diversos políticos e economistas um fascínio por eusocialidades - o exemplo mais familiar deste tipo de organização social é o das formigas e abelhas - na qual cada elemento cumpre o seu papel eficientemente em prol do bem comum.

 

Apenas isso consegue explicar o menosprezo por tudo o que não seja produtivo no sentido mais economicista, que não seja possível contabilizar, catalogar; a redução do individuo a um sujeito econ, incapaz de errar, de fazer a escolha mais racional. E, quando isso não acontece, estes são olhados com desprezo, apelidados de ignorantes.

 

O que estes "supostos" liberais não percebem é que a liberdade engloba também o direito a errar. A liberdade de buscar a felicidade pressupõe a infelicidade como um resultado possível.

 

Ou, percebem, bem melhor do que eu julgo e procuram retirar a liberdade sob o manto da inevitabilidade, tornar os cidadãos menos livres, mais eficientes, para, segundo eles, alcançar o bem comum e o bem-estar dos próprios cidadãos.

 

Numa cena do "Mundo a seus pés", após o eclodir da grande depressão, Bernstein, funcionário de sempre de Charles Foster Kane, interroga incrédulo o banqueiro Thatcher, que veio em salvamento do império empresarial de Kane, como é que tinham chegado a isto, os custos tinham sido sempre inferiores às receitas. Oh mas os vossos métodos, respondeu o banqueiro, nunca faziam investimentos, usavam o dinheiro apenas para comprar coisas.

 

Durante anos Portugal, pressionado também pelo inefável PEC, viu-se obrigado a cortar no investimento público. Durante a última década, o investimento nacional, público e privado, caiu dez pontos para os 18% do PIB; e o investimento público ficou reduzido a metade (aqui). Compraram-se submarinos, "comprou-se" o BPN, comprou-se artificialmente a redução do deficit orçamental e até cursos superiores se compraram.

 

E agora dizem-nos é preciso cortar mais, cortar nos investimentos e empobrecer. Eu não sou economista mas nunca percebi como é que se pagam dívidas ficando mais pobre, com menos rendimento.

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2010
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2009
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2008
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2007
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D