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Dois Olhares

"Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen."

Ser um turista de massa é como participar num jogo de interpretação de papéis em tempo real (LARP), onde o viajante procura realizar o ideal da viagem, porém sem se expor a riscos ou contratempos, quase fugindo da realidade. Isso é feito seguindo uma lista de tarefas predefinidas: capturar uma determinada vista para uma selfie (concluído), tocar um monumento (concluído), experimentar uma iguaria local (concluído), fotografar um museu (concluído). A viagem torna-se burocrática. As intermináveis filas para entrar nos locais mais populares são um exemplo desse processo de burocratização. Depois de concluir com sucesso essas tarefas, carimbam o passaporte e partirão para o próximo destino.

 

Entretanto, para que essa fantasia seja mantida, o local visitado deve ajustar-se à imagem pré-concebida pelo turista; deve oferecer a "experiência" idealizada. As tarefas precisam estar cuidadosamente orquestradas para que o turista possa realizá-las. Se uma experiência nunca existiu, ela precisa ser criada, como foi o caso do desfile do Dia dos Mortos no México (criado porque os turistas esperavam que esta existisse após ter aparecido num filme de James Bond). Dessa forma, as cidades se moldam às vontades do turista, adaptando-se continuamente para atender às expectativas dos guias de viagem, preservando uma ideia do lugar que muito possivelmente nunca tenha realmente existido.

 

Locais arqueológicos lidam melhor com a pressão de permanecerem inalterados, como apresentados nos guias de viagem, o que acaba por protegê-los do desgaste do tempo.

 

Já em locais habitados, em cidades vivas como Lisboa ou Porto, essa exigência entra em conflito com sua natureza de evolução constante, assim como acontece com todos as coisas vivas. Os turistas vão aos seus destinos retirar vivências, sugam vida. Para manter o equilíbrio necessário para que o local não se transforme numa ruína é preciso que exista um influxo de vida maior do que aquele que é retirado. Caso contrário o turismo irá transformar o sítio numa ruína, num simulacro de vida, cumprindo unicamente o seu papel de cenário para o jogo.

A certa altura das nossas vidas a discussão recorrente muda. Esta deixa de ser sobre a profissão que se deseja e passa a ser sobre onde queremos viver. Imagino que passados mais uns anos esta verse sobre o local do repouso eterno - melhor cemitério? Père-Lachaise, é claro.

 

Actualmente pertenço aos que se encontram na segunda discussão que, como todas as que verdadeiramente interessam, nunca tem fim. No entanto, sei onde nunca viveria: há um edifício que na sua fachada tem um anúncio de venda "Aqui vou ser feliz". Nunca aguentaria esta pressão; estaria sempre a interrogar-me: se nem aqui sou feliz, o que se passa comigo? E imagino o terror das assembleia de condóminos. Uma espécie de reunião de apresentadores de programas da manhã, todos sorridentes e bem dispostos, e eu. "Aqui vou estar confortável" seria um slogan bem melhor.

 

Ou então o anúncio é mais um exemplo da obsessão com a felicidade eterna e constante; como ela é usada e abusada para vender tudo, desde bebidas gaseificadas a apartamentos; e como as expectativas criadas distorcem a visão que temos de nós, dos outros, da realidade. 

No excelente documentário da Netflix sobre a grande Nina Simone é contado um episódio já quase um cliché do mundo artístico: a cantora, transtornada e alheada da realidade - pintava no camarim o cabelo com graxa de sapatos - é empurrada pelo seu marido controlador para o palco para mais uma actuação.

 

O fenómeno Pagliacci segundo o qual o artista é obrigado a esconder as suas angústias perante o público era limitado a esta classe profissional. No entanto, agora com as redes sociais o palco tornou-se universal. Cada um já não vai ter 15 minutos de fama como profeciava Warhol, a atenção é constante e neste contexto a perfeição é o mínimo aceitável. E é simbólico desta nova realidade o facto das fotos digitais, o principal veículo da "actuação", não terem negativos como tinham as analógicas. Tudo é positivo nem que seja preciso repetir inúmeras vezes as selfies até poderem ser publicadas.

 

 

Na semana passada, comecei a leitura do romance incompleto e editado postumamente de David Foster Wallace e, como sempre acontece, nasceu em mim, perante a genialidade da sua prosa, um Salieri*: aquele momento em que as pautas de Mozart escorregam pelas suas mãos e toma a consciência de que nunca será capaz de produzir algo tão bom - um sentimento ainda mais forte do que o habitual por se tratar de um livro inacabado e como tal objecto de pelo menos mais uma revisão do autor e eventuais melhoramentos.

 

Apesar de não ter qualquer desejo, nem apetência ou talento, para algum dia escrever um romance (e deus sabe como as livrarias estão já cheias de obras de qualidade duvidosa, como magistralmente se encontra descrito no malomil) não me consigo abstrair como autor de um simples blog da diferença abissal existente; o que me deixou a um pequeno passo de seguir as pisadas de Gogol e apagar o blog e desistir de escrever o quer que seja, no meu caso, é certo, sem provocar clamores de maior.

 

No entanto, não deixa de ser irónico que recorra à escrita e a este blog semi-abandonado e sem visitantes para transmitir este sentimento de incapacidade, de ter acabado de ser confrontado com a minha mediocridade - o que torna tudo ainda mais doloroso e estranho, mas reflecte também a necessidade intrínseca de comunicar.

 

Este artigo é também, e não vale a pena esconder, uma tentativa mal amanhada, e condenada ao insucesso, de copiar o estilo do DFW, por isso o melhor é deixarem a internet e comecem a ler o "Pale King".

 

* Na versão cinematográfica de Milos Forman, uma vez que na realidade este era um compositor de grande qualidade.

"...the lure of every addiction which is losing yourself to time"

Don DeLillo "Underworld"

 

Há um sentimento de culpa na inacção. Medo que a existência se torne incontingente. Procura-se o sentido da vida na exaustão completa do tempo - pouco interessa a forma, a quantificação acima de tudo. 

 

Os nossos gadgets quebraram os resquícios dos últimos tempos mortos: a ansiedade transfere-se para o nível da bateria. 

 

Ou não é nada disto. Apenas o medo de ficarmos sós com os nossos pensamentos; obrigados de quando em vez a reflectir um pouco.

 

Enquanto descansava no meu quarto de Hotel, na Provença, deparei-me com a foto supra do NY Times: centenas de turistas atropelavam-se para tirar uma foto ao quadro mais famoso e fotografado do mundo.

 

Por muito que tente não consigo perceber por que razão alguém viaja milhares de quilómetros, espera horas em filas, para acabar a ver a Mona Lisa através do ecrã minúsculo da sua câmara/smartphone; que vantagem terão ao ter a sua própria foto, que ângulo desconhecido obterão que não está presente nas milhares de fotografias online?

 

Uma das explicações poderá residir na pressão de grupo: se todos na sala estão a tirar fotografias haverá um forte estimulo para se seguir o exemplo. Apostaria, porém, noutra explicação: as fotos servem como prova que estiveram no Louvre, que viram a Mona Lisa - que tanto podia ser uma pintura como um celeiro.

 

Enquanto deambulava nestas reflexões pensei nos locais que havia visitado nestas férias. A forma como os turistas, comigo incluído, afectam o "habitat natural", como conseguem transformar qualquer local num parque temático, devidamente adaptado às suas necessidades e expectativas. 

 

E conclui que eu sou o pior tipo de turistas: julgava que viajar, mesmo uns meros dias no estrangeiro, me permitiria conhecer um país, entender os seus habitantes. Na verdade, uma viagem, se tivermos sorte, "apenas" servirá para melhor nos conhecermos a nós próprios.

 

"Everything is real estate. You're a product of your geography"

- Don DeLillo

 

As selecções de futebol são cada vez mais, e ainda bem, um espelho da multiculturalidade dos respectivos países: Sami Khedir, Boateng, Mesut Ozil não são propriamente "germânicos". Continua-se, porém, a perpetuar os estereótipos como a frieza e a eficácia alemã ou a desorganização africana.

 

A artificialidade da nacionalidade não a torna menos relevante: a geografia continua a ser o variável mais importante no "sucesso" individual. No entanto, a consciência dessa artificialidade serviria pelo menos para ter uma diferente perspectiva das acções, abusos e violência perpetuados diariamente.

 

"o acaso, o livre arbítrio e a necessidade, que de algum modo são incompatíveis, mas se entrelaçam e trabalham juntos. Então, o que existe é a franca urdidura da necessidade, que não deve ser desviada de seu curso, pois seus próprios movimentos alternados tendem somente a isso. O livre arbítrio, ainda livre para fazer sua lançadeira transitar por entre os fios escolhidos e o acaso que, apesar de limitado em sua acção pelas justas linhas da necessidade e desviado de seus movimentos pelo livre arbítrio, parece governado por ambos, porém reina sobre os dois e tem a última palavra nos factos."

 

"Moby Dick" - Herman Melville

 

Discute-se muito se o Governo é o mais liberal da nossa história, mas o que não há dúvida é que é o mais microgerente.

 

O Governo esqueceu-se de dois dos fios que tecem a vida: acaso e a necessidade. Julgam que tudo o que acontece está sob o seu controlo e dependência (ex: o lamentável episódio do Sec-Estado da Cultura com a Alexandra Lucas Coelho).

 

E, se algo não ocorre como planeado, há um ressentimento, como sucedeu em relação ao salário nos privados que, segundo o Governo, não teria descido como deveria ou à venda de automóveis que desceu acima do esperado.

 

A multiplicação de grupos de trabalho e respectivos relatórios, o foco na burocratização e centralização de decisão são sintomas da sua obsessão na microgerência, que nem a vida privada dos governados escapa. Assim como o ênfase em metas e objectivos triviais que não reflectem qualquer progresso ou melhoria das condições de vida ("vida das pessoas não está melhormas a do país está").

 

Num mundo global calhou-nos na sorte um Governo do século XVII.

Nasci em liberdade, vivi sempre em liberdade. Deste modo, durante anos julguei que seria uma falta de respeito falar desta data e do seu significado porquanto por muito que tentasse não conseguiria imaginar o que seria viver num Portugal acorrentado e em completa escuridão, trazida pelo manto negro de Salazar; e, da mesma forma que, por muito que se tente, não se consegue colocar nos pés de alguém invisual ou surdo, apenas quem passou por aquela realidade poderia com autoridade falar da falta de liberdade, da repressão, da fome.

 

No entanto, Pynchon fez com que a minha opinião mudasse: "um ano e um lugar não precisam de incluir a nossa presença física para que exista um sentimento de pertença".  Este é o poder da história.

 

Por isso agora digo que o 25 de Abril também é meu. E será dos meus filhos, netos, bisnetos...

 

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